terça-feira, 3 de novembro de 2009

O anjo do panamá



Texto e fotos: Manolo
Estava uma noite escura como breu e a viagem previa-se dificil, os quase cem quilómetros entre Rosso e Djama estavam praticamente intransitáveis, as águas do rio Senegal chegavam a atingir, por vezes, as partes mais altas da pista: uma verdadeira odisseia.

Era por volta das 21 horas quando o Land Rover Defender «130» atravessou a fronteira em Djama. O destino era a ilha de Saint-Louis, classificada como património mundial pela UNESCO, localizada no noroeste do Senegal, perto da foz do rio do mesmo nome e a 320 quilómetros a norte de Dakar, onde uma equipa de seis cientistas - dois espanhóis, um francês, um norueguês, um canadiano e uma portuguesa, Helena - iria desenvolver um trabalho de pesquisa no rio Senegal, em cooperação com o «Centre National de la Recherche Scientifique» do Senegal e com o patrocinio da União Europeia.

A equipa não quis jantar no Hotel de la Poste, praticamente vazio, foram todos para um restaurante francês muito simpático que havia nas imediações, com música ao vivo; a excepção foi Helena que, a pretexto de estar cansada, recusou amavelmente o convite do colega francês Gustave, apesar da insistência deste.

Helena preferiu a esplanada coberta do hotel, pediu um gin-tónico e ficou a ver a chuva a cair: os vendedores arrumavam precipitadamente o artesanato junto ao velho edificio da «Aeropostal», as pessoas corriam, havia um vaivém ininterrupto dos pequenos autocarros com gente aos magotes no interior e outros tantos pendurados, as crianças chapinhavam nas poças. Um véu de neblina caía sobre a ilha e, qual fria mortalha do esquecimento, envolvia os velhos edifícios de arquitectura colonial de meados do século XIX.

Não tinha fome nem sono, mas estava exausta. No céu nem sequer uma estrela luzia, um casal divinamente formoso que passava despertou-lhe atenção, trocaram sorrisos e persegui-os com o olhar até desaparecerem na esquina.

Helena é morena e usa o cabelo muito curto; um céu de sardas sobressai-lhe do rosto fino. Não sendo bonita, exala exostismo, sensualidade, elegância e charme. É uma mulher linda de se ver.
Apeteceu-lhe um cigarro, não que fumasse muito, mesmo assim...
No momento em que o pôs na boca surgiu-lhe à frente um zippo dourado, que uma mão firme de homem, num gesto implacável, fez faiscar esfregando a roldana de metal rugoso na mola.
-Obrigada
-De nada. Francesa?
-Não, sou...
-Posso fazer-lhe companhia? Dois gins-tónicos como muito limão, por favor, pediu ao empregado!
Helena, meio atordoada e confundida com a ousadia, gostou da surpresa. O homem que lhe acendeu o cigarro e a alma, cerca de 35 anos, sentou-se, tirou o panamá da cabeça e colocou-o sobre a mesa.

- Gosta da chuva?
Acenando afirmativamente com a cabeça, respondeu: - e adoro o cheiro da terra molhada.
- A chuva é o mar do céu - disse-lhe ele num tom doce enquanto batia o copo no dela.
- Quando era pequena perguntava ao meu pai porque é que chovia e ele respondia-me que era para fazer a terra feliz.
- Resposta sábia. Esse firmamento que tem no rosto herdou-o de seu pai?
Helena concordou, corou, baixou os olhos, abriu a mão e com o dedo médio percorreu as formas suaves do panamá, como se percorresse o passado.
- Como se chama?
- Peço-lhe desculpa nem me apresentei, trate-me por Jean.
- Eu sou Helena.
- Helena, como a filha de Zeus? E o que faz?
- Sou professora e você?
- Sou...mercador, é isso mesmo, sou mercador. Ao mesmo tempo que esboçava um sorriso que já a tinha encantado.
- Em que área?
- Na área dos sonhos, da fantasia, negoceio com anjos e querubins e cruzo os céus da terra à procura das melhores utopias - concluiu com um dos seus belos sorrisos de cujo encanto tinha o segredo e que era, talvez, a mais clara explicação para o seu charme. Era bem constituido, mãos grandes, corte de cabelo «vintage hair» que lhe dava um ar misterioso, de sagaz aventureiro.

- Já há muito tempo que não via um panamá tão bem feito. Suave, sem costuras, é um autêntico panamá. Foi numa das suas viagens que o encontrou? Já esteve no Equador?
São feitos à mão no Equador. Sem costuras, suave ao tacto. Este é o mais clássico dos chapéus para a estação cálida - um mito da elegância.
Os panamás não se fazem no Panamá. E isto já diz muito sobre a história e a tradição centenária dos «sombreros» mais clássicos da estação estival. O Panamá foi durante um par de séculos um importante porto de embarque, mas na realidade os elegantes chapéus brancos, cujos destinatários eram os membros da alta burguesia europeia e norte-americana, fabricavam-se (e ainda se fabricam) no Equador, para além de um reduzidissimo número de países da América do Sul.

Fabricados...será mais correcto dizer criados. Porque os verdadeiros panamás são uma verdadeira obra de artesanato comparável a um tapete feito à mão, como o expressou muito bem Tom Wolf, o autor do livro A Fogueira das Vaidades: «O prazer de tê-lo e de pô-lo compensa os sacrificios que os pobres passam em produzi-lo».

Não é a única homenagem conformista ou politicamente correcta. Basta observar um pouco como se fazem. Obtidos a partir de uma espécie de folha de palmeira conhecida por «toquilla» (corta-se antes que alcance o metro e meio de altura), a manufactura de um panamá de luxo exige de um a dois meses de trabalho aos indigenas que o tecem, impecavelmente, sem costuras.
As fibras das folhas demolham-se durante alguns dias, ficando a escorrer à sombra de cabanas para se escolherem as mais elásticas e subtis. A tecedura começa pelo topo e realiza-se numa peça única. É um exercício de mestria que remonta, provavelmente, à arte dos antigos «mayas» no fabrico dos seus magníficos tecidos vegetais.
- Como é que percebe tanto de panamás? Perguntou Jean, estupefacto e totalmente fascinado com a eloquência da sua atraente interlocutora.
- É um chapéu mítico e era o preferido do meu avô, tinha vários...verdadeiros, feitos à mão no Equador.

A conversa prolongou-se pelo jantar, na elegantíssima sala Mermoz, decorada com motivos do correio aéreo que voava de Toulouse ao Rio de Janeiro, com uma das escalas em Saint-Louis, e do seu piloto mais famoso: Jean Mermoz. A sala estava vazia e proporcionava uma tranquilidade celestial. Helena e Jean estavam absorvidos pela conversa, trocando de vez em quando gestos carinhosos que acrescentavam à intimidade do jantar: uma paixão recíproca.

A libido entre os dois é notória pelos sinais gestuais que confirmam, no vinho degustado com prazer e encanto, e identificado por Jean como o símbolo do requinte: - Beber vinho e amar são instantes de total entrega. Helena molhou os lábios no «Chateau Petrus», e beijou apaixonadamente Jean. Este pegou-lhe na mão e quando chegaram junto à escadaria estreita levou-a ao colo até ao quarto 219; não parecia um vulgar quarto de hotel, móveis, objectos pessoais, quadros e retratos, pareciam ter uma relação directa, muito íntima, com o hóspede.
- Costuma ficar aqui muitas vezes?
- Fico sempre aqui. Tem uma vista soberba sobre o rio e a praça.
- Helena desviou o cortinado para ver; Jean, abraçando-a pela cintura, começou a beijar-lhe o pescoço...

De manhã, Helena acordou com um dedo de sol a acariciar-lhe o rosto. O dia estava bonito e ela feliz. Os seus olhos brilhavam e o seu corpo, adoçado por uma noite de amor, parecia ter mais energia do que nunca.
De repente, deu-se conta que estava sozinha. Não havia malas ou roupa espalhada, apenas móveis, objectos sem vida, sem memória. Objectos que só ganham brilho, quando há memória. Jean tinha partido, porquê?
Não chorou, mas os seus olhos ficaram tristes. Desceu, dirigiu-se à recepção e perguntou se o hóspede do quarto 219 já tinha saido?
- O recepcionista, admirado, balbuciou: - O hóspede do quarto 219? Esta noite não alugamos esse quarto...
- Um senhor chamado Jean não consta da sua lista? Costuma ficar sempre no quarto 219, veja lá, por favor, deve conhecê-lo.
- Jean? Quem costumava ficar nesse quarto era Jean Mermoz, o famoso aviador, mas morreu em 1936 no meio do Atlântico e agora o quarto é uma espécie de museu, quer visitá-lo? Tenho muito prazer em...
- Não se incomode, muito obrigado.

Helena sentou-se na sala Mermoz para tomar o pequeno almoço, fixou o olhar na imagem do piloto que lhe dá o nome, a qual, na noite passada não parecia estar ali naquela parede.
Gustave, o francês, aproximou-se:- Bom-dia, ontem quando viemos do restaurante ainda bati uma vez à porta do teu quarto, mas já devias estar a dormir...estavas tão cansada que dormistes como um anjo, não?
Helena, sem deixar de olhar para a imagem de Jean Mermoz, respondeu muito baixinho: - Como um anjo não, com um anjo.