sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Bazungu






Texto e fotos: Manolo
Local das fotos: Bukima e Goma. RD Congo.


Entrei na palhota de telhado de colmo contornando um peixe seco pendurado, que me surgiu repentinamente na cara, qual espanta-espíritos.


O ancião estendeu a esteira de esparto, levou algum tempo a sentar-se nela, respirou fundo, sorriu, bateu com a mão firme no chão de terra seca que expeliu pequenos suspiros de pó e disse: «Bazungu (branco) senta-te aqui junto a mim». Acedi. Sentei-me na extremidade da esteira e uma fresta de luz que se escapulia pelos buracos da parede, feita de argila e de canas de bambu, resplandecia sobre a minha cara como um holofote numa tramóia teatral; mal via o meu interlocutor , que se encontrava na parte mais recôndita da cabana, numa penumbra quase impenetrável. Ao meu lado um recipiente de casca de abóbora seca estava repleto de vagens de feijão-verde. O silêncio estava imóvel.


- Mandaste-me chamar? Conheces-me? Perguntei para quebrar aquele silêncio que, sem saber porquê, me angustiava. Receava que aquele homem à minha frente estivesse ali uma eternidade a olhar para mim sem nada dizer.
- Conheço-te, és o único bazungu que anda a pé pelas ruas de Goma. Em Goma, o bazungu não se mistura com o mweusi (preto). O que é que procuras?
- Sou um viajante.
- Para viajar basta existir. Retorquiu o ancião, parafraseando Fernando Pessoa, o que me deixou mais perplexo. Ainda por cima, numa linguagem cuja semântica parecia uma mistura fina de português e de francês, com uma pitada de crioulo.

- Como te chamas? Perguntei.
-Henry Carhakubwa. Bazungu, sabes o que significa Carhakubwa? Limitei-me a dizer que não com a cabeça e o ancião continuou. Carhakubwa significa árvore flexível, que não cai com o vento, mas não é verdade. Estou como o milenar embondeiro que vai ser cortado para se fazer uma estrada nova.

- Henry, que idade tens?
- Muito tempo. Já passei por muitos tempos: tempo de fome, de colheitas, de perca, de ganho, de guerra, de sofrimento, de amor, de doença, de sol, de chuva, de doce e de amargo, demasiados tempos. Se eu te dissesse que tinha 110 anos respondias-me que era muito tempo, se eu te dissesse que tinha 70 anos respondias-me que ainda era novo. Vós, os bazungus, sois reféns do tempo. O tempo foi uma invenção da morte.


-Tens medo da morte? Desafiei-o.
Tenho medo é da mentira. Aos africanos é a quem mais se mente. Maltratados pelos próprios governantes, difamados pelas agências internacionais, iludidos pelas instituições de solidariedade, roubados na sua inocência pelos evangelizadores; até as organizações não-governamentais lhes dão falsas esperanças, o que ainda é pior. E de que forma reagem? Arrastam os pés, tentam emigrar, pedem, suplicam ou exigem dinheiro com a insolência de quem a ele tem direito, porque aqui, bazungu também é sinónimo de dinheiro; já reparaste que as crianças de manhã não te dizem «good-morning», dizem-te «good-money». Roubar a dignidade da pessoa é a melhor maneira de a manipular.


Os bazungu, aqui em Goma, deslocam-se de jipe de casa para o trabalho, depois para o restaurante, de novo para o trabalho, finalmente para casa. Andam num circuito fechado, têm medo, cheira-lhes a morte, mas convivem bem com a mentira. E tu? No meio dos pretos, nas ruas que fedem, nas encruzilhadas da sobrevivência, o que procuras?
- Só conhecendo podemos aprender a respeitar as diferenças, respondi-lhe, e, sem o deixar ripostar, perguntei-lhe: como é que falas tão bem português?

Por um espaço de tempo (já não me atrevo a quantificar) o silêncio voltou a ficar imóvel. A noite caía sobre a aldeia de Bukima, a escuridão ganhava um tom avermelhado e no ar pairava o cheiro dos braseiros. Do meio da púrpura, Henry começou a falar.

- Em 9 de Novembro de 1955 comecei a trabalhar nos Caminhos-de-ferro de Benguela, nos carregamentos de cobre que vinham do Katanga, era uma quarta-feira. Foi aí que conheci portugueses e comecei aprender...
- 9 de Novembro de 1955? Foi o dia em que eu nasci, que coincidência! Atalhei com os olhos esbugalhados.

- Coincidência? Bazungu, não há coincidências. Existe um provérbio africano que diz: o estrangeiro só vê aquilo que sabe. Tudo na vida tem um significado, não podemos parar o destino nem o dominó das consequências. É tão certo como o tempo em que não chegamos à próxima Primavera.

A conversa ia longa e eu estava a mais de 2 horas de jipe de Goma. Despedi-me de Henry, dizendo-lhe que na manhã seguinte regressaria a Bukima para ir ao Virunga fotografar os gorilas e continuarmos a nossa conversa, talvez ele me revelasse porque me mandou chamar.

- Amanhã? Bazungu, amanhã, já estarei a viver de outra maneira.

O regresso ao hotel foi de sobressalto, sentia a garganta seca. Durante a noite a imagem de Henry Carhakubwa queimava-me os olhos, a chuva torrencial alimentava-me o pesadelo. E como se fosse telepatia, ouvia a sua voz rouca, qual cantor de blues numa mistura fina de português e de francês com uma pitada de crioulo; lá estava, clara e cristalina como a água da montanha, dentro da minha cabeça.

(- Amanhã? Bazungu, amanhã, já estarei a viver de outra maneira).

(- Não há coincidências...não podemos parar o dominó das consequências).

Pouco passava das 5 horas da manhã, ainda o dia se espreguiçava, quando saí de Goma de regresso a Bukima; passei a enfadonha barreira de controlo, a seguir à estrada do aeroporto, deixei o trilho do vulcão Nyiragongo à esquerda e segui a pista de barro vermelho, passando por aldeias de palhotas com telhados de colmo e de chapa ondulada ferrugenta. Cruzei-me àquela hora com mulheres carregadas de bananas e de filhos às costas, cruzei-me com as «tchikudu» (as pesadas trotinetas de madeira, de tracção humana, que transportavam legumes e cana-de-açucar para o mercado de Goma), vi crianças em algazarra com uniforme escolar, camiões lotados onde as pessoas se misturam e confundem com os haveres, outros com capacetes azuis.

Quando cheguei à palhota de Henry Carhakubwa havia várias mulheres em pranto. Um caixão envolto em tecido escarlate, com cornucópias era carregado por alguns jovens. Num dos lados do caixão, e em dialecto Tutsi, lia-se uma frase feita com caricas de Fanta, de Coca-Cola e de cerveja Primus. Lacrimejando e com a garganta seca, perguntei a um dos jovens o que queria dizer aquela frase. Em francês, respondeu-me:

«Em África, quando um velho morre é uma biblioteca que arde.»